terça-feira, janeiro 08, 2013

All Played Out


Imagino que todas as pessoas que gostam de futebol sejam minimamente familiarizadas com a mudanças ocorridas no futebol da Inglaterra nos inícios do anos 90. Na década anterior, durante o governo conservador de Margaret Thatcher, os clubes ingleses, ainda quem bem sucedidos dentro do campo, viviam uma séria crise com de hooliganismo e violência nos estádios. Um desastre no exterior (Heysel), o banimento dos times ingleses das competições internacionais e um desastre interno (Hillsborough) eram sinais claros que as medidas adotadas pelos órgãos competentes não resolviam os problemas. A Copa de 1990 se avizinhava e aparecia como uma encruzilhada para o futuro do futebol no país. A Inglaterra precisava mostrar ao mundo que tinha alguma intenção de tomar medidas mais civilizadas no acompanhamento de competições esportivas. O entusiasmo natural dos ingleses com o futebol apresentado na Copa contrastou com o tratamento hostil recebido por eles por parte dos anfitriões. Era preciso mudar a imagem, porque nos olhos de um estrangeiro todo o inglês era visto como um hooligan. Assim, o mundial da Itália acabou servindo como um catalizador para a implementação das medidas sugeridas no "Taylor Report" e para a criação da Premier League, que transformou os clubes ingleses em paradigmas de modernidade.



Um belo relato da participação da Inglaterra na Copa de 1990 é feito por Pete Davies no livro "All Played Out - The full story of Italia ´90". É certamento uma das melhores obras já escritas sobre futebol. Com o compromisso de só lançar o livro após o mundial, o autor teve acesso a concentração, ao técnico e aos jogadores da seleção da Inglaterra. Isso por si só ja tornaria a leitura interessante, mas o escritor não parou aí. Ele acompanhou as eliminatórias, os jogos preparatórios, visitou os jogadores nos seus clubes, foi a Itália meses antes da bola rolar. Ele se misturou a torcida, conversou com hooligans, foi aos centros de imprensa, conversou como seus colegas jornalistas, conversou com dirigentes e organizadores, e fez tudo isso sem mostrar deslumbramento ou um ar blasé. Foi crítico quando necessário e entusiasmado quando o tema era empolgante. O relato é excelente, mas o mais interessante são as reflexões e conclusões do autor. Reflexões sobre o esgotamento daquele velho sistema inglês (daí o título do livro*), sobre a falta de perspectiva do cidadão médio na Inglaterra e a decorrente limitação e falta de visão de mundo dos seus torcedores. Sobre a ingenuidade dos jogadores, ora mostrada sob forma de simploriedade, ora sob forma de arrogância. Sobre a falta de noção dos dirigentes e o seu completo distanciamento com que se passa nas arquibancadas. Sobre os excessos da mídia, do sensacionalismo do tablóides, e  sobre como o governo parece tomar medidas somente para responder o clamor da mídia, e não para efetivamente resolver os problemas.

Um trecho bem interessante do livro trata da cobertura de uma partida das eliminatórias na Suécia. Havia uma grande preocupação com o comportamento dos torcedores ingleses em Estocolmo. Os jornais britânicos relataram um cenário de guerra e o governo, no afã de responder a mídia, resolveu proibir um amistoso que a seleção inglesa faria na Holanda. Mas naquele momento, as instituições inglesas se mostravam completamente perdidas quando o assunto era futebol. Conforme se pode ver nas páginas abaixo o autor mostra que a cobertura da imprensa foi equivocada, e que o governo inglês tomou uma decisão precipitada baseada nas manchetes dos tablóides.




"They made it sound like the centre of Stockholm got stripped bare."

"Why didn´t anyone go and check? What´s a journalist supposed to do, if not to check these things?


"And banning the match was nothing less than people in charge of law and order (i.e. the government) panicking and admitting defeat - all in the cause of´ being seen to do something"

"As your support for the return depends upon the behaviour of fans, what criteria will that behaviour be judged by? Because there are people in football who believe that it´s headlines"


"I would like to say that coverage in the British media has been rather exaggerated"

"It seems that the reports of the size of the problem and the damage caused were greatly exaggerated."

"The Rotterdam fixture was cancelled two days after the game in Stokholm"

"But then, in September, football was nothing to the English government but a problem and - let´s face it - bad headlines."

Todas essas histórias e reflexões podem parecer parte de um passado distante quando olhamos para o atual momento do futebol inglês, mas me parecem que seguem atuais quando olhamos para o que acontece no Brasil.  Meu temor é que podemos estar vendo um exemplo disso na cobertura da briga acontecida na inauguração da Arena. Por óbvio eu lamentei ocorrido. Considero compreensível que, na escassez de futebol na época do ano, o assunto acabe ganhando mais espaço (talvez não nas páginas esportivas, como bem salientou o Ilgo Wink). O que eu não consigo aceitar é o tom sensacionalista na cobertura. Tom esse que em nada contribui para a solução do problema.

Na matéria de capa que iniciou a série de reportagens sobre o assunto, o jornalista Paulo Germano empregou frases como  "A violência tem cadeira cativa na Geral do Grêmio" e afirmou que a briga "maculou" a inauguração da Arena. Será que a briga maculou mesmo a festa? Quantos pessoas estavam no estádio? Certamente mais de 50 mil. Quantas pessoas se envolveram na briga? O site do Tribunal de Justiça noticia que a briga "resultou em seis detenções pela Brigada Militar". O que significa/representa a conduta de meia dúzia de pessoas num universo de dezenas de milhares de torcedores? É o suficiente para "macular" tudo o que de bom aconteceu naquele dia?

No dia seguinte a esta publicação, houve nova matéria, estranhamente assinada pelo setorista do Internacional, requentando as informações do dia anterior e questionando a Brigada Militar, que por sua vez prometeu uma solução rápida. Nesse clima, comentários odiosos no Facebook viraram desculpa para matéria. Na virada do ano, o colunista Diogo Olivier propoes uma reflexão, com medo que aconteçam "mortes nos estádios, algo já nem tão raro assim em São Paulo e Rio". Então as mortes NOS ESTÁDIOS não são raridades no sudeste do país? e quando foi a última vez que isso aconteceu? Não seria mais acertado falar em mortes relacionadas ao futebol? Essa hipérbole é aceitável? Não seria o uso desse expediente uma das principais armas da mídia sensacionalista? 

Futebol é apaixonante, entre diversos motivos, porque atrai multidões. Pessoas das mais variadas crenças, formações e origens. É preciso saber conviver com as diferenças, mas ainda assim eu fiquei um pouco chocado com a falta de visão de mundo que um dos supostos líderes da geral demonstrou ao dar uma entrevista sobre o caso.  Triste.

Por último e mais preocupante é a postura do governo, aqui representado pela Brigada Militar. O Coronel coronel Alfeu Freitas havia ameaçado e ontem finalmente anunciou que os instrumentos musicais, faixas e bandeiras serão proibidos nos jogos da Arena. Uma medida que assemelha ao jogar o sofá fora da famigerada anedota. Uma medida que se repete e que não consegue solucionar problema. E nem pode solucionar, porque não guarda nenhuma relação com a causa. Pergunta-se: Quem a Brigada Militar quer punir? O que a Brigada quer punir? A Brigada tem competência legal para punir? Qual a relação das faixas com a briga? Como que a proibição de instrumentos musicais ajuda a prevenir novas ocorrências? Essa medida não serve muito mais para fornecer uma resposta rápida aos questionamentos da mídia?

É triste, mas o esgotamento desse cenário é parecido com o retratado na Inglaterra do final dos anos 1980. Se não ocorre na mesma intensidade, ao menos se verifica o mesmo infeliz tripé: Torcedores fechados no seu já restrido mundo, uma imprensa com forte viés sensacionalista e um governo que parece não saber como agir em relação ao esporte. 


* Foi feito um documentário chamado "One Night in Turin" baseado no livro. Em função disso as novas edições do livro passaram  também a serem entituladas assim. Considero que o All Played Out retrata melhor o espírito da obra. De qualquer forma recomendo o filme e, especialmente, o livro.
 

9 comentários:

martina disse...

Sabe, aquela matéria dos comentários no facebook da geral me fez entender os chiliques dos David Coimbras, Nandos Gross, Tulio Milmans & cia com os tuítes dirigidos a eles: na RBS qualquer comentário em rede social é fato jornalístico. Alguém devia avisar o Melzer que jornalismo é outra coisa.
Aliás, eu adoraria saber quem foi o autor da tal matéria, mas pelo jeito ele teve vergonha de assinar.

Mas, ironias à parte, eu me preocupo com o poder ou direito (e que pelos jornais é cobrado como dever) de punição que o comandante brigada tem. Eu gostaria de saber mais sobre isso.

Anônimo disse...

otima reportagem, parabéns.
infelizmente a imprensa ainda comanda o governo.

luís felipe disse...

Excelente post, ótimas informações, muito boa a comparação. Só acho que não é possível comparar as organizadas brasileiras com os hooligans ingleses: aqui, o problema é institucional.

aqui, as organizadas violentas estão inseridas no contexto dos clubes, ganham dinheiro dos clubes, ganham benefícios dos clubes, representam os clubes como seus torcedores em jogos fora de casa. Na Inglaterra o hooliganismo era um reflexo de um problema social sério; no Brasil, o hooliganismo é causa de um problema sério, dos privilégios e da impunidade dentro das instituições.

Não acho que exista generalização e sensacionalismo por parte da imprensa no que diz respeito à violência das organizadas. Eu presenciei fatos muito piores que não foram noticiados de forma adequada. Acho que existe, porém, uma conveniência: pela primeira vez o problema não diz respeito só ao Grêmio e seus torcedores, mas também à concessionária da Arena. E aí, existe uma parcialidade grande por parte de setores da imprensa, assim como um trabalho de relações públicas eficiente para que os assentos da Arena tenham a maior lucratividade possível - o que envolve extirpar células de violência ou de privilégios em ingressos.

Anônimo disse...

Brilliant!

Anônimo disse...

Kruse, obrigado pela dica de leitura.

O Luiz Felipe foi muito feliz em suas observações. Só faço um pequeno acréscimo: além da questão financeira, temos que observar que a Geral pede e faz por merecer essa perseguição. É triste, mas ela não fica apenas na festa está dando a razões para ser banida.

André Kruse disse...

Eu acho que, num estado democrático de direito ninguém merecer ser "perseguido". E certamente não vejo razões para a Geral ser banida.

O que é preciso é investigar quem comete delitos dentro do estádios ou relacionados ao futebol/torcidas. Feita a investigação, se oferece uma denúncia, se for o caso. E se for o caso se inicia um processo judicial contra estes individuos.E se for o caso, os inviduos são condenados.

Darci disse...

André Kruse, virou uma indústria essa Geral. tem cara que se sustenta com elea (sm trabalhar). se isso não é moitivo para banir, então pobre futebol...

André Kruse disse...

Não, isso não é motivo para banir.

Chega a dar um desânimo em ler uma coisa dessas.

Que sejam "banidas" as pessoas que dela se sustentam então. Ou ainda melhor, que seja eliminado o fator/elemento que dá sustento para essas pessoas.

André Kruse disse...

Sobre o mesmo tema, foi publicado um artigo bem interessante na Zerom Hora do dia 12 de janeiro de 2013:

ARTIGOS
Um outro futebol é possível, por João Hermínio Marques*

Torcer é ato político. Aristóteles vislumbrou toda ação humana como um fazer político. Este jornal é político. O clube e sua adesão são ações políticas. Tudo é política.

O fenômeno torcedor surgiu no início do século 20, tendo esse nome só no Brasil por conta dos jovens que acompanhavam partidas literalmente torcendo seus lenços. Torcida organizada, por evidência, é a aglomeração de torcedores justamente organizados para fins de apoio ao clube eleito. Portanto, torcida é a institucionalização político-artístico-cultural do coletivo torcedor, sendo natural alguma disputa de poder.

É notório que as ocorrências na inauguração da Arena e na despedida do jogador Fabiano são casos específicos com ressonância penal. No entanto, é vital não espetacularizar a violência de forma sensacionalista, como deseja parte da imprensa esportiva. Seria, inclusive, crucial a ajuda jornalística na desacerbação da rivalidade.

Embora complexa, a questão da violência nas torcidas gaúchas é bem mais fácil de resolver do que as de outros Estados. Necessita-se, contudo, de inteligência, coisa ausente no comando atual da Brigada Militar, que prefere idiotices noticiosas como proibição de avalanche e proibição de materiais festivos em vez de resolver o problema.

O que a segurança pública de eventos esportivos no RS precisa é intensificar as ações preventivas de monitoramento permanente; urge ter mais diálogo social amplo e aberto com todos os envolvidos (não monólogos policiais). E, aproveitando a Copa do Mundo 2014, o governo deveria criar um órgão harmônico com as secretarias de Esporte, Cultura, Turismo, Segurança Pública e Secretaria da Copa, para cuidar exclusivamente do fenômeno torcedor sob conscientizadora ótica humanista.

Existem diversas secretarias e subórgãos fantasmagóricos na administração, mas algo sério como sugerido ainda inexiste. As torcidas gaúchas são marcas de enorme potencial, podendo virar verdadeiros centros turísticos de cultura esportivo-popular. O Estado entrando em campo com uma includente agenda positiva trivializará a separação entre joio e trigo. Ao contrário, a continuidade do tratamento excludente aumentará vias marginais naquelas genuínas mobilizações do povo. Válido frisar que a tela violenta nada favorece o Estado e o bom cidadão, ora torcedor festivo, que vê suas práticas tradicionais reprimidas em lucrativas páginas esportivo-policiais, então concessivas de fama aos maus torcedores e aos brigadianos com suas inócuas medidas.

Nacionalmente, é imperiosa uma reforma garantista no Estatuto do Torcedor (liberdade para a festa; não criminalização da cultura torcedora; estancamento da elitização higienista com a obrigatoriedade da setorização popular nos estádios; fim dos jogos sobremesa de novela). Ao mesmo tempo, a majoração das penas individuais aos torcedores delituosos e a justa criação do tipo penal referente ao abuso policial em evento esportivo também são medidas fundamentais para uma nova arquibancada.

Igualmente, é indispensável aprovar a regulamentação desportiva (PEC 202/2012) na busca por um futebol justo, democrático e popular, combatendo a corrupção cartola. Afinal, diferença não há entre o marginal travestido de torcedor e o mafioso com disfarce de dirigente esportivo.

Um outro futebol é possível. Mas, alguém realmente quer jogar? Nós, da Frente Nacional dos Torcedores, queremos.

*Presidente da Frente Nacional dos Torcedores, coordenador da filial gaúcha do movimento (FNT-RS) e advogado