quinta-feira, maio 08, 2014

Cadastramento de torcedores no Taylor Report

Recentemente causou grande revolta a notícia de que "Uma reunião entre Ministério Público, Brigada Militar, representantes da Arena Porto Alegrense e direção do Grêmio definiu que a arquibancada norte do Estádio da Arena será destinada apenas para as torcidas organizadas. Para tanto, o Grêmio irá cadastrar, conforme prevê o Estatuto do Torcedor, os integrantes interessados até 30 de junho. A partir dessa data, só será permitido o ingresso de quem estiver no cadastro. O público em geral que quiser assistir aos jogos no local deverá, obrigatoriamente, escolher uma das organizadas e se cadastrar."

A diretoria do Grêmio publicou nota dizendo que não teria concordado de imediato com essa proposta, uma vez que "Na ata da reunião realizada na sede do MP, consta, nas linhas 28 e 29, a seguinte informação: O Coronel Élvio informa que estará encaminhando cópia desta ata, ao Conselho Deliberativo, para a devida análise.", e de fato tal trecho consta na ata, o que acaba ficando, no mínimo meio dúbio em face de uma frase anterior no mesmo documento onde se lê que o decidido foi "consignado, por consenso, entre os presentes".


Poderíamos aqui questionar a legitimidade e a postura do representante do Grêmio nessa reunião, mas por ora me chama mais atenção a conduta do Ministério Público no caso, uma vez que diante da controvérsia voltou a afirmar que "que o cadastro das torcidas organizadas e sua separação ocorrem por força de lei (Estatuto do Torcedor)."

Pois bem, reli a lei 10.671 e confesso que não encontrei ali nenhuma previsão sobre a necessidade de um setor específico para torcidas organizadas. Tampouco achei alguma norma que sustentasse a proposta de que alguém deveria ser obrigado a se cadastrar numa torcida organizada para poder frequentar algum setor do estádio.  Bem que tentei, mas não consegui entender no que se baseia o ministério público ao querer impor um cadastro para os torcedores.

Uma das vantagens de não ser estar na vanguarda (para não dizer estar no atraso) dessa questão do tratamento de torcedores é poder aprender com erros e acertos dos órgãos públicos e clubes de outros países. E na questão de segurança nos estádios não há outro paradigma que não a Inglaterra e o Taylor Report (tema já tratado anteriormente aqui no blog).

Após a tragédia de Heysel, o governo conservador de Margaret Thatcher buscou implementar uma série de medidas para solucionar a questão do hooliganismo nos estádios ingleses. A mais infame delas foi a proposição do o "Football Spectators Act 1989", que previa um tal de "membership scheme" onde todo e qualquer torcedor precisaria ter um cadastro e um cartão de identidade correspondente para frequentar as arquibancadas da Inglaterra e País de Gales.

No Trivela, Ubiratan Leal explicou bem o clima na Inglaterra na virada dos anos 80 para 90:

"O senso comum credita muita das mudanças que ocorreram no futebol inglês a Thatcher, mas ela teve pouca ou nenhuma influência em tudo o que aconteceu. A principal bandeira do Partido Conservador britânico era identificar os torcedores com carteirinhas, sob o Ato de Espectadores de Futebol de 1989. Houve um protótipo disso no Luton Town, cujo presidente David Evans era membro do parlamento pelos Conservadores. “Você teria que passar o cartão pela catraca para ganhar acesso. Cada torcedor teria o seu. Não teria como funcionar, especialmente naquela época em que a tecnologia não havia avançado o suficiente. Teria sido um desastre. De certa forma, Hillsborough salvou o futebol inglês de algo que não daria certo”, analisa o jornalista inglês Tim Vickery, correspondente da BBC no Brasil. A exigência da carteirinha pode parecer boba aos olhos brasileiros, mas é uma atitude agressiva em um país em que não há a cultura de se carregar identidade, e nem da polícia de pedir por essa identificação."


O gabinete da Primeira Ministra se esforçou muito pela aprovação de referida medida, mas acabou esbarrando nas conclusões do Lord Justice Taylor em seu paradigmático relatório que, ao analisar algumas críticas ao projeto (A desproporcionalidade, a injustiça, os espectadores casuais,  a diminuição da renda dos clubes, o perigo de congestionamento e desordem, a real probabilidade de eliminar os hooligans e os reforços policiais) concluiu que não só achava a ideia pouco prática e ineficaz como também temia que a medida poderia aumentar os problemas fora do estádio. Tal conclusão está no parágrafo 419 do Taylor Report:


"419. I therefore have grave doubts whether the scheme will achieve its object of eliminating hooligans from inside the ground. I have even stronger doubts as to whether it will achieve its further object of ending football hooliganism outside grounds. Indeed, I do not think it will. I fear that, in the short term at least, it may actually increase trouble outside grounds.". (Numa tradução livre: "Eu temo que, ao menos em curto prazo, ele possa na verdade aumentar o problema fora dos estádios)

O interessante é que existe ampla documentação sobre esse debate na internet. Há um site sobre o Hillsborough Independente Panel que revela alguns memorandos trocados entre membros do governo sobre o assunto na época. Destaco três deles nos links abaixo.



Memo from Cabinet Office: briefing for PM Margaret Thatcher; Taylor's conclusions on National Membership Scheme; Government response and line to take

Nesse trecho, o líder do Partido Trabalhista, Neil Kinnock, perguntou  a Primeira Ministra se ela  "entendia que membros de ambos os lados da Câmara dos Comuns e as pessoas por todo o país iriam considerar a decisão dela de forçar a passagem do seu esquema de cartões de identidade como uma ofensa ao bom senso e a decência?"



Nessa nota enviada para a Primeira Ministra, o secretário de estado explica as conclusões do relatório Taylor e seu possível impacto nas medidas pensadas por Thatcher. Consta no trecho sublinhado "De fato, ele (o relatório) sugere que se você tratar as pessoas como animais elas irão se comportar como animais"
 
 Há quem defenda que o modelo adotado na Inglaterra não serve para o Brasil. Tal posição me parece bem razoável, visto que não se pode simplesmente importar medidas sem observar a cultura local. Contudo, não considero ser muito sábio ignorar os exemplos vindos de fora e toda a experiência de nação futebolística que passou anteriormente por uma situação bem parecida.


Um comentário:

Anônimo disse...

Chama atenção a vassalagem oficial do diretoria gremista,sempre omissa no trato da defesa dos direitos dos torcedores, em especial ao daquele setor do estádio, provocado por motivos políticos-eleitorais, conjugado pelo radicalísmo que impera nesta gestão!